terça-feira, 13 de janeiro de 2015

José Antonio Gutiérrez: eu não sou Charlie Hebdo

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Começo por dizer, antes do mais, que considero uma atrocidade o ataque aos escritórios da revista satírica Charlie Hebdo em Paris e que não creio que, em nenhuma circunstância, tenha justificação converter um jornalista, por mais duvidosa que seja a sua qualidade profissional, num objectivo militar.
O mesmo é válido em França, como na Colômbia ou na Palestina. Tão pouco me identifico com qualquer fundamentalismo, seja cristão, judeu, muçulmano, nem sequer com o bobo-secularismo afrancesado que erige a sagrada “República” a uma deusa. Faço estes esclarecimentos necessários, pois, por mais que insistam os gurus da alta política que na Europa vivemos numa “democracia exemplar” com “grandes liberdades”, sabemos que o Grande Irmão nos vigia e que qualquer discurso que sai do libreto é duramente castigado, Mas não creio que censurar o ataque contra o Charlie Hebdo seja sinónimo de celebrar uma revista que é fundamentalmente um monumento à intolerância, ao racismo e à arrogância colonial.

Milhares de pessoas, compreensivelmente afectadas por este atentado, têm feito circular mensagens em francês a dizerem “Je Suis Charlie” (Eu sou Charlie), como se esta mensagem fosse o último grito em defesa da liberdade. Pois bem, eu não sou Charlie. Não me identifico com a representação degradante e “caricaturesca” que faz do mundo islâmico, em plena época da chamada “Guerra contra o Terrorismo”, com toda a carga racista e colonialista que isto congrega. Não posso ver de bom modo essa constante agressão simbólica que tem como contrapartida uma agressão física e real, mediante os bombardeamentos e ocupações militares a países deste horizonte cultural. Tão pouco posso ver com bons olhos estas caricaturas e os seus textos ofensivos, quando os árabes são um dos sectores mais marginalizados, empobrecidos e explorados da sociedade francesa, que têm recebido historicamente um tratamento brutal: não me esqueço que no metro de Paris, no início dos anos 60, a polícia massacrou à pancada 200 argelinos por pedirem o fim da ocupação francesa do seu país, que já tinha deixado um saldo estimado num milhão de árabes “incivilizados” mortos. Não se trata de inocentes caricaturas feitas por livre-pensadores, mas sim de mensagens produzidas a partir de meios de comunicação de massas (sim, ainda que pose como sendo alternativo Charlie Hebdo pertence aos meios de massas), carregados de estereótipos e ódios, que reforçam um discurso que considera os árabes como bárbaros aos quais há que conter, desenraizar, controlar, reprimir, oprimir e exterminar. Mensagens cujo propósito implícito é justificar as invasões de países do Médio Oriente, assim como as múltiplas intervenções e bombardeamentos orquestradas a partir do Ocidente em defesa da nova divisão imperial. O actor espanhol Willy Toledo dizia, numa declaração polémica – por apenas tornar evidente o óbvio – que “o Ocidente mata todos os dias. Sem ruído”. E é isso o que Charlie e o seu humor negro ocultam por baixo da forma de sátira.

Não me esqueço da capa do Nº 1099 de Charlie Hebdo, em que se banalizava o massacre de mais de mil egípcios por uma brutal ditadura militar, com o beneplácito da França e dos Estados Unidos, através de uma manchete que dizia qualquer coisa como “Matança no Egipto. O Corão é uma merda: não pára as balas”. A caricatura era a de um homem muçulmano crivado de balas, enquanto se tentava proteger com o Corão. Pode haver a quem isto pareça ter graça. Também, na sua época, colonos ingleses na Terra do Fogo achavam que tinha graça posar em fotografias junto aos indígenas que tinham “caçado”, com amplos sorrisos, carabina na mão, e com o pé em cima do cadáver ensanguentado e ainda quente. Em vez de ter graça, essa caricatura perece-me violenta e colonial, um abuso da tão fictícia como manipulada liberdade de imprensa ocidental. Que aconteceria se eu fizesse agora uma revista cuja primeira página tivesse a seguinte frase: “Matança em Paris. Charlie Hebdo é uma merda: não pára as balas” e fizesse uma caricatura do falecido Jean Cabut crivado de balas com uma cópia da revista nas mãos? Claro que seria um escândalo: a vida de um francês é sagrada. A de um egípcio (ou de um palestino, iraquiano, sírio, etc.) é material “humorístico”. Por isso não sou Charlie, uma vez que a vida de cada um desses egípcios baleados é para mim tão sagrada como a de qualquer desses caricaturistas hoje assassinados.

Já sabemos o que vai acontecer; haverá discursos a defender a liberdade de imprensa por parte dos mesmos países que em 199 deram a bendição ao bombardeamento da NATO, em Belgrado, à estação de TV pública da Sérvia dizendo que era “o ministério das mentiras; que se calaram quando Israel bombardeou em Beirute a estação de TV Al-Manar em 2006; que calam os assassinatos de jornalistas críticos colombianos e palestinos. Depois da bonita retórica pró-liberdade virá a acção liberticida; mais macartismo vestido de “anti-terrorismo”, mais intervenções coloniais, mais restrições a essas “garantias democráticas” em vias de extinção, e em consequência, mais racismo, A Europa consome-se numa espiral de ódio xenófobo, de islamofobia, de anti-semitismo (os palestinos são, de facto, semitas) e este ambiente é cada vez mais irrespirável. Os muçulmanos na Europa do século XXI são já os judeus e os partidos neo-nazis estão a tonarem-se novamente respeitáveis 80 anos depois, graças a este sentimento repugnante. Por tudo isto, apesar da repulsa que me causam os ataques de Paris, Je ne suis pas Charlie.

José Antonio Gutiérrez D.
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