sábado, 14 de novembro de 2015

Lula, o metalúrgico


A figura do Lula, o que surgiu como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, é lembrada, associada às greves, o jovem barbudo a quem faltava um dedo.
Hoje, essa figura está eclipsada pela do Presidente da República, líder do povo, envolta em carisma que nem seus inimigos mortais se atrevem a negar. Mas será preciso reconhecê-la, para que se entenda o homem de hoje, o que não é apenas o Lula, mas o que governou o Brasil por oito anos e que marca a História desse País desde 1975.

Lula aproximou-se do Sindicato dos Metalúrgicos em 1972, incentivado pelo irmão, o Frei Chico. Em 1975 foi eleito seu presidente, uma ascensão rápida e que deve ser entendida como resultado de seu carisma, já evidente, embora não amadurecido ainda, mas também como possível, em função da baixa adesão do operariado ao sindicato. Àquela época, só se aproximavam dele os operários qualificados, logo adiante classificados como “ferramenteiros”, mesmo assim mal chegando aos 30% de inscritos no sindicato. As comunidades eclesiais de base pareciam mais confiáveis e os sindicatos carregavam a imagem de órgãos de assistência, especialmente a médica.
Maria Fernanda Arruda

Como ingrediente da receita do bolo de Delfim Neto, o que precisaria crescer, antes que se discutisse sobre a sua divisão razoável, constava a manipulação dos índices que iriam corrigir a remuneração dos assalariados. Acusada a fraude por Mario Henrique Simonsen, a mando do ditador de plantão, Ernesto Geisel, os números reais chegaram à imprensa, onde um jovem articulista e professor da FGV, Eduardo Suplicy, explorou o tema constantemente.

Desfraldou-se então a bandeira da “reposição salarial”, que comovia não só os operários, e à sua sombra o jovem Lula conseguiu conduzir uma greve de 40 dias, paralisando a indústria do ABC paulista, derrotando a intransigência petulante da FIESP e a coação das forças policiais, e obtendo atendimento à grande parte das suas reivindicações.

As elites começavam a ter a sua atenção voltada para aquela figura de um barbudo mal ajambrado, que berrava do alto do carro-de-som do sindicato, sem qualquer medo da ditadura. Essa coragem começava a ser admirada. Em junho de 1978, um dos príncipes da grande imprensa, Ruy Mesquita, que carregava o nome pomposo e mais uma clara competência profissional, entrevistou o Lula.

Quatro horas de conversa, postas depois em mais de 100 laudas datilografadas, mostraram o jovem sindicalista em corpo inteiro, claro e honesto, para gáudio do aristocrata que conversava com ele: o líder dos operários não era um marxista e muito menos um anarquista. Esse retrato não deveria ter sido esquecido, pois que ele mostra o Lula, pouco preocupado com manobras políticas, demonstrando respeito nenhum por políticos e suas instituições, inclusive o PMB, que se apresentava então como oposição à ditadura, ostentando a figura heráldica de Ulisses Guimarães. Os movimentos estudantis também não o comoviam: estudante deve ficar estudando.

O Lula de 1978 estava totalmente concentrado na luta pelo salário e mais algumas reivindicações básicas, quanto a trabalhos forçados em horas-extras, segurança e insalubridade. Taxativamente, disse a Ruy Mesquita que não sabia nada sobre Economia e que não tinha qualquer interesse político. Ele não era um alienado, era um “obreirista”. A questão a ser pensada: quando ele deixou de ser, quando reconheceu que a classe operária carecia de muito mais do que um líder sindical?

Já havia o destemor no “conversar com o inimigo”, e que hoje muitas vezes criticamos nele. Em alguns casos, injustamente. Ele já conseguia associar a sua figura de força carismática à disposição para a conversa, a negociação e o acordo. Em algumas ocasiões isso resulta em algo. Não foi o caso do entendimento com Murilo Macedo. Os operários, novamente reunidos sob a mira das metralhadoras que voavam sobre as suas cabeças, decidiram prosseguir com a greve. Lula foi preso, por desacato à vaidade de um sabujo da ditadura; ele, mais diversos dirigentes do sindicato, posto sob intervenção.

Mesmo com os diretores do sindicato presos, a diretoria cassada, o sindicato sob intervenção e a proibição de fazer reunião, houve manifestação no dia 1º de maio. Após a missa, os trabalhadores decidiram enfrentar os militares e o governo de Paulo Salim Maluf e dirigiram-se a pé até o estádio da Vila Euclides. Eram mais de 100 mil operários, somando-se a eles gente do povo, artistas, músicos, professores, diante disso o Exército e a polícia de Paulo Salim se retirando.

Sem intermediários a intimidar, os operários ajustaram-se em negociações feitas diretamente com as empresas. A ditadura era posta nua, na sua incompetência. Estava derrotada e foi lá, em São Bernardo, com Lula, que ela começou a cair. O movimento das “diretas já”, graças a ele, foi possível, e sem sofre pressões de forças policiais. A violência desastrada fez dele o Herói dos operárioos. As classes médias ouviram e aplaudiram os que tomou por seus heróis: os oradores Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, os políticos que deixaram suas plateias a esperar, enquanto negociavam uma eleição de bastidores.
O Lula de 1978 estava totalmente concentrado na luta pelo salário e mais algumas reivindicações básicas

Em fevereiro de 1980 foi fundado o PT: “Em oposição ao regime atual e ao seu modelo de desenvolvimento, que só beneficia os privilegiados do sistema capitalista, o PT lutará pela extinção de todos os mecanismos ditatoriais que reprimem e ameaçam a maioria da sociedade. O PT lutará por todas as liberdades civis, pelas franquias que garantem, efetivamente, os direitos dos cidadãos e pela democratização da sociedade em todos os níveis”. Começava a surgir o senhor Luiz Inácio Lula da Silva. O Lula havia aprendido que o aviltamento dos salários não era determinado pelo Ministro do Trabalho, nem pela FIESP, nem pela Volkswagen; era e é necessidade do sistema capitalista. Em nenhum momento, entretanto, ele entendeu e muito menos disse que, em sendo assim, “lutemos pela queda do capitalismo”. A sua proposta foi e é a de luta por condições dignas de vida para o povo brasileiro, dentro do sistema. Todos precisamos comer.

Já não se mirava apenas o operário, mas sim uma imensa classe social, o “povo”, os herdeiros da senzala. Nunca o ideário do petismo de Lula desejou o exercício direto do Poder pelo povo, mas sim a “inclusão social”, entendendo-se que ela se obtém quando é ultrapassada a barreira da miséria e da pobreza absoluta. Uma filosofia política aparentemente simplista não será entendida, entretanto, com as simplificações que lhe fazem as elites.

Em resumo: o PT existe, não para que o povo chegue ao Poder, mas para que Lula chegue ao poder, com o compromisso de resgate dos oprimidos. O PT não é revolucionário, não é “de esquerda”, é ainda o “partido obreirista”, nascido nos confins de São Bernardo do Campo, apenas se fazendo uma “família” muito maior, de proporção nacional. Personalismo? Sim. E aí se encontram as figuras de Vargas e de Lula. O carisma levado ao seu mais alto grau, o que simploriamente podem rotular como “personalismo”. Mas admitamos, para que seja possível pensar no futuro, que nenhum partido político, socialista ou comunista, construiu mais para a classe operária, ou, como sempre será mais exato identificar, para o povo brasileiro.

Vargas deixou como legado a legislação trabalhista e a Justiça do Trabalho. E o presidente Lula? Ele salvou da miséria algo como 40 milhões de seres humanos. Suas práticas foram “assistencialistas”? Foram e não poderiam ter sido outras. Podem até mesmo ganhar o título de “paternalistas”. No Nordeste ouve-se comumente: “não votar no homem seria ingratidão”. O paternalismo, agrade ou não aos mais letrados e mais fornidos de dinheiro, é valor fundamental na cultura do povo brasileiro, faz todo sentido no seu mundo, marcado antes pelo direito de uso e gozo dos senhores da casa grande, depois pelo mandonismo dos coronéis. É preciso primeiro que se mude esse mundo, o que não se consegue com o fornecimento de “vara de pescar”, como sempre alardeou a “política social” pretendida pelas elites.

A preocupação com o povo jamais foi perdoada pelas elites saudosas do escravismo. A elas associam-se os interesses do sistema financeiro e dos capitais estrangeiros. Vargas foi o tiranete vindo dos Pampas; Lula, o metalúrgico estropiado vindo dos cafundós das fábricas. A primeira maquinação, visando destruí-lo, foi arquitetada e muito mal por Fernando Collor de Mello, que se elegeu graças ao pudor do homem que não soube reagir às suas infâmias. Um velho líder sindical, saído dos quadros do Partido Comunista, foi então sustentado a bom soldo, para criar a Força Sindical que se oporia à CUT. Medeiros ganhava mesada dos empresários de São Paulo, antes de se fazer político recebido em Palácio.

A luta contra o assalto das tropas sob comando de FHC foi perdida, na medida em que não impediu o saque à Nação. Mas foi ao mesmo tempo ganha, na medida em que foi o PT quem restou, como voz clamante no deserto, a apontar para a desfaçatez coroada pelos interesses econômicos. A transformação do sonho neoliberal em pesadelo do desemprego, associado à metamorfose do “Sapo Barbudo” em “Lula Paz e Amor”, obra de marketing político (Duda Mendonça) e desassombros negociais (Jose Dirceu), e eis o jovem Lula, transformado em líder da Nação, posto na Presidência da República.

Até agora Lula tem reagido muito mal aos ataques de bandos de urubus. Lembra o Lula posto diante do super-Collor. Admitamos: ele não se colocou em pé e com dignidade diante do que aconteceu sob comando de José Dirceu.Sabemos dos erros ,e muito sérios. Admiti-los com decência significa a certeza de que não serão repetidos. Mas “o hábito do cachimbo faz a boca torta”. Onde a disposição para uma limpeza de faxina grossa nos quadros de um partido reconhecidamente envelhecido, curtido no sabor do Poder? Como enfrentar as incompetências na gestão da Petrobrás, que tomaram a forma abjeta da corrupção? Isso não será feito, na alegação de que sempre foi assim, o que é verdade. É preciso de o Governo, que é PT, tenha competência para definir novas formas de gestão da coisa pública. E isso não foi feito ainda, admitamos.

É preciso fazer a hora da verdade e dizer com letras todas, efes e erres, que não será apoiada uma política que entrega o Brasil aos banqueiros. Lula tem que se dar ao respeito, não pode agora ser ameaçado por novas “forças ocultas”. Vargas teve a coragem de dar nome aos bois. Não os enfrentou. Lula, que enfrente e tenha certeza de que o seu carisma conduzirá o povo brasileiro.


Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil


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